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A MOÇA FEIA DA JANELA E A LEBRE QUE TODOS ADMIRÁVAMOS

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A MOÇA FEIA DA JANELA E A LEBRE QUE TODOS ADMIRÁVAMOS Empty A MOÇA FEIA DA JANELA E A LEBRE QUE TODOS ADMIRÁVAMOS

Mensagem por WLADIR SANTOS 30/11/2009, 10:19 am

In SANTOS, Wladir dos. CONTANDO CAUSOS.... Max. 1986

A MOÇA FEIA DA JANELA E A LEBRE QUE TODOS ADMIRÁVAMOS Image20 (foto do ano de 1956, mostrando o topete que viria abaixo em 1957, como calouro em Sorocaba)


Sorocaba, anos dourados. Eu ainda calouro com os cabelos começando a ressuscitar e já sofrendo toda sorte de artimanhas para remontar o topete vitimado pelos veteranos que nunca souberam apreciar, nem a obra de arte que ele representava e nem as histórias eletrizantes que tinha vivido.

Para se chegar à nossa República vindo do centro da cidade, o melhor caminho era a Rua da Penha. Subida forte até lá. Àquelas horas, em que a gente dava por findo o longo dia, não existiam mais bondes, e o negócio era ir a pé mesmo. Coisa de um quilômetro, mas para quem tinha vodka como combustível, ficava danado de difícil.

Nessa rua, para a parte mais central, havia uma série enorme de casarões de famílias tradicionais, dessas que passam a maior parte do tempo soturnas, mal dando para perceber que seriam habitadas, o que sabíamos pela presença esporádica do velho jardineiro que às vezes ia cortar a grama, arrumar as folhagens e coisas assim.

Numa dessas casas morava uma moça muito feia, branca como cera de vela de defunto, cabelos escorridos em franja e curtos, óculos redondos de aros cor de rosa, dois dentes bem salientes na parte superior, e que invariavelmente estava à janela quando era nossa hora de passar por ali. Não sei para quem ela estava montando a arapuca, pode ser que até para mim, mas o fato é que todos a olhávamos com certa gula. Explico melhor: não estou falando do corpo da moça, que nem sabíamos se tinha, mas da lebre branca, enorme, que sempre estava em seus braços, com olhos vermelhos e fita também vermelha no pescoço. Bicho dócil, que se bem feito poderia dar um bom churrasco. Provavelmente dormia no quarto dela, talvez até na sua cama. Os comedores de gato da República tinham esse palpite com o belo animal, cerca de quatro ou cinco quilos no mínimo.

Enquanto olhávamos para a lebre a moça pensava que era para ela, e com isso ficava todas as tardes a postos para ver-nos passar.

Numa das noites de sábado em que voltávamos para casa, todos meio etilizados por vodka do Bar Gato Preto, ao passarmos pela casa da moça vimos o belo churrasco solto no jardim. O silêncio caiu sobre a turma, ninguém dando um único pio para não acordar a moça e acontecer dela sentir falta do bicho.

Meu irmão mais que depressa começou a escalar o enorme portão de bronze batido, encimado por lanças, e estava quase que passando sobre elas quando um dos outros girou a maçaneta do mesmo e percebeu que não estava trancado. Foi só abrir e a lebre correu em nossa direção aos pulinhos. Nós nos preparávamos para dar caça a ela quando a mesma parou bem aos pés do Satã, um colega de moradia que ganhou esse apelido entre nós por ter ficado feio como o diabo quando, depois de levar uma vigotada na cabeça, precisou raspar os cabelos para os pontos.

Trabalho de abaixar e pegar, sem que o bicho desse um único grito. Preso pelas orelhas, tratamos de ir rapidamente para casa, onde depois de alguns minutos a lebre já estava assando em nossa churrasqueira no fundo do quintal.

Satã sabia matar gatos com facilidade, e era até comedor de cobras, segundo nos contava, quando ainda morava perto da represa de Paulo Afonso. Contudo, era também expert em matar coelhos e lebres: deu um simples piparote com o dedo médio no focinho do animal e ele não soltou nenhum rugido. Tirar a pele foi questão de minutos.

Quem ficou penalizado ao ver a barbaridade do crime foi Amaral, professor de Educação Física do Instituto de Educação que morou conosco até o dia em que se casou. Para ele Satã argumentava, sem gozação alguma, convicto, que a lebre foi colocada à nossa disposição pelo próprio Deus, só isso explicando ela vir correndo e parar em nossos pés, sem emitir um único berro e sem morder. Ficou dolorido, resmungou, mas comeu.

O bicho ficou pronto lá pelas quatro horas, quando ainda estávamos jogando 21 para passar o tempo. Estava delicioso.

Por volta das oito horas da manhã, com todos dormindo tranqüilamente, ouvi alguém batendo palmas no portão. Espiei pela fresta da porta e vi que era a moça da janela.

- Pois não?

- Eu vim buscar minha lebre que vocês pegaram ontem à noite em minha casa...

- Lebre? Mas que lebre?

- Não se faça de desentendido, moço. Eu quero minha lebre, que ela é de estimação...

- Moça... eu lhe digo que aqui não tem lebre alguma... respondi-lhe sem mentir, mas também sem esclarecer que ali havia tido uma lebre na madrugada...

- Vocês vão ter que entregar, ou para mim ou para a polícia, pois vou agora mesmo dar parte do roubo...

- Pode ir se isso a satisfaz, mas saiba que eu tivesse aqui uma lebre, qualquer que fosse ela, teria lhe dado de presente agora mesmo...

- Eu não quero qualquer lebre... quero a minha lebre...

E a moça foi se exasperando até que, vendo que nenhuma lebre nem coelho sairia daquele mato, foi-se embora. O pessoal todo se levantou com a discussão, demos boas risadas e estávamos já nos preparando para discutir o que iríamos fazer para o almoço quando parou diante da porta uma viatura da polícia.

Quatro soldados, desses que sempre iam nos aborrecer e não ficavam cansados desse trabalho inútil que tinham quando alguém, com muita maldade no coração, queixava-se de nós.

- Quem é o responsável pela casa? Perguntou um soldado moço, que já sabia qual seria a resposta pois estava habituado a ela. Todos ali eram professores e consideradas “pessoas de bem”. Só eu era apenas estudante, e sempre as coisas ruins me eram atribuídas.

- Aqui todos somos responsáveis... não há chefe porque aqui é uma República... , respondi prontamente, antes que alguém gritasse lá de dentro: “está falando com ele...” ou então viesse me pedir algo bem à frente dos policiais, dando-lhes a entender que eu mandava no pedaço, como sempre me faziam.

- Tenho uma intimação então para todos vocês, para que compareçam ao Plantão Policial para uma conversa com o Delegado...

- Conversar sobre o quê? Ele não pode vir até aqui?

- Claro que não... É sobre uma lebre que vocês teriam surrupiado de uma casa aí abaixo, creio que da filha do Coronel Azevedo.

A coisa tomava novo rumo, pelo menos para mim. Nós mexemos em casa de marimbondos, e por essa altura já pensávamos na encrenca montada por termos feito churrasco com a lebre da filha do alta patente.

- Daqui a pouco estaremos lá... podem ir na frente...

- Tenho que levá-los pessoalmente...

- ?! - diga-me, soldado, e como pretende colocar seis homens dentro de um jeep que já está com quatro pessoas? Só se vocês foram em nosso colo...

O sujeito ia dizer alguma coisa quando apareceu meu irmão com cara de quem estava acordando àquela hora, e a coisa ficou acertada com ele, que se responsabilizou pela nossa ida à Delpol.

Fomos realmente até lá, mas por volta das quatro da tarde. O Delegado estava furioso com o soldado que tinha confiado em nós, mas quando viu a turma chegando se acalmou, indo logo perguntando, bem à frente da moça, que ali se encontrava desde as dez da manhã, ainda inconsolável:

- o que vocês fizeram com a lebre da moça?

- lebre? Mas de qual lebre estão falando? Nós podemos ser comedores de gato, mas não de lebres, esclareceu prontamente Satã.

- Não há provas, moço... eu sei que foram vocês... pensa que nunca reparei que olhavam para ela sempre que passavam por ali?, esclareceu a dona do bicho.

- Olhar para a lebre? Moça, mas como você se dá pouco valor!... eu olhava mesmo, mas não era para a lebre, mas para você, que acho uma moça muito bonita, fotogênica, olhos fulminantes, pele lisa como se fosse de porcelana, cabelos... esclareceu Roberto à moça, notando até que ela havia perdido a agressividade e agora nos olhava com ares condescendentes. Não há nada que produza melhor efeito que um elogio falso a uma moça feia que nos acusa de alguma coisa.

Alguns instantes depois ela retirou a queixa que havia feito e se foi, quando o Delegado nos pediu para ficarmos ali para um “interrogatório mais severo”.

- Digam-me aqui. Estava boa? Vocês tiraram a lebre de dentro da casa da moça?

- Deliciosa, o Senhor perdeu um churrasco e tanto... vá lá no próximo sábado, pois pretendemos comprar uns franguinhos e estaremos fazendo um churrasquinho para passar o tempo... Quanto ao ter tirado a lebre, não fizemos isso. Nós estávamos passando por ali quando nos assustamos com aquele bicho grande, branco, correndo em nossa direção. Sem saber que era lebre, dei-lhe um chute no focinho pensando que ia morder meu pé e ela morreu. E,... já que estava morta...

Voltamos para casa com a promessa do Delegado em surgir por lá no sábado seguinte.

Contudo, a coisa não parou aí. Satã começou a ficar condoído pela moça e pelo sofrimento da mesma, só amainado pelos elogios do Roberto. Ele iria devolver o bicho a ela. Em partes sim, mas devolver.

Pegou a pele e enrolou como se fosse papiro, juntou os ossos que estavam no lixo e providenciou para que também o que tinha sido comido por ele fosse ali empacotado.

Na madrugada da segunda teve a pachorra de se levantar da cama, pegar o pacote e ir até a casa dela para devolver. Jogou por cima da grade e voltou correndo para o merecido sono dos justos.

Por um bom tempo ela não nos esperou mais à janela, só voltando a fazê-lo alguns meses depois, quando sempre dirigia olhares gulosos na direção do Roberto, quem sabe esperançosa de que os elogios que lhe fizera, na Delegacia de Polícia, fossem verdadeiros.

No sábado seguinte o Delegado veio ter à nossa República, junto com um dos policiais. Ficaram jogando 21 até de madrugada, saboreando dois frangos à passarinho que estávamos fazendo e um gato (eu não comia gatos, mas os outros sim), coisas que o Satã havia caçado nos terrenos vizinhos.

Por volta das três horas o Satã entra correndo, esbaforido, fechando a porta atrás de si e olhando pela fresta para saber se foi ou não seguido. Sob o braço, trazia dois frangos vivos, um já galo, quase que estrangulados para não fugirem. Quando se voltou para entrar definitivamente, levou um susto enorme ao ver, bem ali na sala, o policial fardado e o Delegado, todos nós no mais absoluto silêncio, antevendo qual a desculpa que iria dar para aquela cena que não deixaria dúvidas em ninguém.

- Oi, tudo bem? Que bom que vocês estão aqui... vejam... eu acabo de ganhar estes dois franguinhos numa rifa e esperava fazê-los aqui hoje, mas temia que todos já tivessem ido dormir. Ainda bem que estão aqui...

E foi tranqüilamente para a cozinha, enquanto que todos ríamos a mais não poder, especialmente da expressão dos rostos das duas visitas, quase que dizendo nelas que não acreditariam se alguém lhes contasse ao invés de terem assistido pessoalmente a tão estapafúrdica explicação.
WLADIR SANTOS
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Mensagem por adelle 30/11/2009, 7:42 pm

Berê!
Essa foto é mesmo sua? Puxa! Como era bonito!
Rimos muito aqui em casa com esta crônica, mais uma para o seu repertório. Meu marido está se deliciando com elas também.
Aliás, o seu estilo de rememorar as coisas é saboroso demais, parece que a gente pode observar as cenas, as descrições, a agitação e tudo o mais.
Meu marido diz que Repúblicas de estudantes são exatamente assim mesmo. Onde eu morei enquanto fazia a Universidade, por ser de mulheres, era bem diferente. Os rapazes são muito mais moleques...risos
Um bjo
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Mensagem por Ruth 1/12/2009, 1:12 pm

Beredicth lindinho
Concordo plenamente com a Adelle. Tenho lido todas as crônicas que escreve e embora eu as tenha ainda no livro que meu Pai me deu (Contando Causos...), as alterações que tem feito nestas valem a pena para rever.
Também concordo que era um gatão...
Bjos
Ruth
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