O POODLE DA MADAME Quando eu comecei a namorar temia, como um perseguido pelo azar, cometer disparates perante as garotas. Quando isso ocorria, eu ficava vermelho como um pimentão maduro, a sensação de ter pernas sumia por completo, o pensamento não concatenava mais, a voz não saía e, não fosse a emenda pior que o soneto, sairia correndo.
Era assim quando ia tirar alguma moça para dançar: bastava ela dizer que não queria fazê-lo para o baile terminar para mim e sentir-me inseguro para outro convite. Creio que boa parte disso se devia ao fato de eu ser muito tímido, extremamente pacífico e retraído, mas outra grande parte provavelmente estava nos meus amigos, sempre dispostos a fazer as maiores gozações quando isso acontecia. Quando um dia eu perguntei a uma garota, a conselho de um amigo mais velho e com grandes experiências na vida, se ela era solteira ou casada, dei um tremendo fora. A moça sentiu-se muito ofendida com isso e, pelo que comentou com outras garotas que vieram me contar, a pergunta sugeria que eu estava habituado a sair com mulheres casadas, além de que também pressupunha que ela fosse leviana. Não tentei nem ao menos explicar: abandonei o campo de luta que havia montado pacientemente durante mais de dois meses e nunca mais retornei, não obstante ela me mandasse alguns recados de que não havia entendido direito minha preocupação, etc. Valeu-me mais a bronca que o pedido de reconciliação.
Agora eu estava tentando conquistar uma moça muito fina, cujo futuro a levaria sem dúvida para salões de música erudita pois tocava magnificamente bem o piano de cauda que tinham em casa, sob os olhares complacentes dos pais. Gente muito rica, educada, fina, vindos de Recife para fixar residência em Piracicaba, onde o pai era Fiscal Federal, terror das indústrias da região que teimavam em sonegar impostos.
Eu só não gostava mesmo era do nome da moça, pois ele sugeriria aos meus implacáveis amigos uma série de gozações: Clarabela. Nome de vaca e, com ele, arrastaria uma série enorme de piadas que não estaria disposto a agüentar da turma. Contudo, eu sabia também que eles estariam morrendo de inveja de mim quando me vissem ao seu lado ou sendo por ela e seus familiares tratado de forma muito especial.
Não era apenas eu que estava começando a gostar dela e nem apenas ela gostando de mim: seus pais revelavam estar dispostos a ter especial carinho pelo primeiro namorado da filha única, e desde o início do nosso namoro haviam colhido informações a meu respeito, visto as fotos que havíamos trocado e, segundo ela me contou, desejavam conhecer-me pessoalmente. Eu era, nos últimos dias, o assunto central da casa. Nosso namoro já ia indo para a terceira semana, ainda meio cheio de mistérios e descobertas sobre gostos, interesses, etc. Mas, conhecer os pais era coisa que não estava em meus planos, pelo menos por enquanto. Não era por nada não, mas nos Anos Dourados quando um rapaz conhecia os pais de uma moça e ia em sua casa estava declarando um compromisso formal e sólido que eu não tinha como manter. Estava na primeira série do curso Científico e por certo teria pela frente muitas coisas relativas à profissão, por essa época voltada para o desejo arraigado de me tornar um Oficial Engenheiro da Marinha de Guerra do Brasil. Só depois desse curso feito é que poderia pensar em algo mais sério e estável.
Clarabela insistia: - "Meus pais querem que você vá lá em casa no Domingo almoçar com a gente... eles gostaram muito de você e o acharam um moço muito bonito... meus pais são rigorosos com rapazes que tentam me namorar, mas no seu caso eles estão deixando, mas querem conhecê-lo... etc."
Não tinha como fugir. Durante a semana toda a moça insistiu nisso e eu já estava até pensando em desmanchar o namoro por achar que ele não daria certo. O que eu procurava era uma espécie de passatempo romântico, e não uma futura esposa, embora ela até que faria um bom papel nisso.
Numa noite da semana nós nos encontramos no cine Politheama para um filme qualquer, apenas para que estivéssemos juntos. Braços dados, aguardávamos o início da sessão quando Clarabela disse com ar de susto: "meus pais..."
O casal viu-nos de longe, acenaram para nós e se postaram algumas cadeiras atrás, impedindo desta forma que eu me sentisse disposto a colocar a mão sobre o ombro da namorada ou encostasse o rosto no dela. Nem me lembro qual era o filme, mas apenas da horrível sensação de estarmos sendo observados o tempo todo.
Quando o espetáculo terminou, nós deixamos propositadamente que todas as pessoas saíssem antes de nós, mas os pais de Clarabela também fizeram isso, para que, ao passarmos por eles, pudessem ter contato inicial e pessoal comigo. Fomos assim apresentados, e enquanto saíamos todos do cinema o Pai da moça nos convidou para que fôssemos ao Restaurante “A Bahiana”, aquele quase na esquina da Rua São José com a Praça José Bonifácio, já secular e especializado em peixes, para jantarmos. Não tive como fugir, nessa espécie de concretização do adágio: “ Se Maomé não vai à montanha, a montanha vem a Maomé...”
Para susto meu os pais de Clarabela não tocaram em nada que pudesse comprometer-me. Apenas conversamos, eles contando coisas da família, ouvindo atentamente o que eu mesmo dizia e, o mais perto das minhas preocupações, chegando no interesse deles querendo saber o que estavam em meus planos profissionais para o futuro. Gente finíssima. O casal, podia-se ver claramente, estava encantado com o primeiro namorado da filha, que cercavam com arames farpados para impedir predadores, mas deixando uma porteira para que só eu pudesse penetrar. Não poderia ser diferente: a moça era inocente de todo, bonita, rica... muito mais rica que bonita e, por esse motivo, deveria estar nos planos de muitos rapazes aventureiros que tinham que ser evitados.
Ao terminarmos o jantar estávamos já numa bem aconchegante amizade. Até a Mãe, que Clarabela sempre me descrevera como muito severa e cheia de manias de honorabilidade que os ricos sempre tiveram, verdadeira Madame, olhava-me com expressões de simpatia, risonha, desejando ler em meus olhos o que se encontrava dentro de mim como intenções, bebendo literalmente minha palavras com ares de quem estariam orgulhosos da escolha da filha.
-Eu o convido para que vá no Domingo próximo em casa e possamos almoçar juntos...
Não tinha como fugir e, afinal de contas, um almoço nada poderia representar de compromisso. Além do mais o aspecto de bichos-papão dos pais de Clarabela já tinha desaparecido por completo.
No Domingo, por volta das onze horas, eu compareci à casa. Fui de taxi, pois estava chovendo e eu me recusava a andar com um guarda-chuva, que sempre me parecia uma coisa muito deselegante. Quando fui apertar a campainha a porta se abriu no mesmo instante e uma senhora alta, mulata, uniformizada, atendeu-me mandando que entrasse. Pegou minha capa e levou-me para a Biblioteca, onde pediu-me que me sentasse enquanto iria dar a notícia da minha presença.
Lembro-me de como fiquei espantado com o ambiente, cercado de enormes prateleiras envidraçadas, onde estariam alguns milhares de livros, todos finamente encadernados e, nas paredes não cobertas por elas, quadros a óleo muito bem emoldurados. Nunca havia visto uma biblioteca como aquela. Ao canto um enorme piano de cauda, já com a tampa erguida, como se estivesse pronto para ser utilizado.
Incômoda mesmo era a poltrona onde me sentara. Tinha uma saliência que, embora pequena, causava-me algum desconforto. Eu ia mudar de poltrona quando Clarabela surgiu à porta e veio correndo em minha direção, seguida dos Pais que estavam visivelmente alegres pela minha presença.
- O Sr. tomaria uma dose de Wiskye?
- Não... obrigado, mas não bebo nada com álcool.
Parecia-me que tudo que eu dizia servia para mais encantar à dona da casa. Eu estava como que acumulando virtudes para me transformar no futuro genro, e o fato de não tomar nada com álcool parecia ser uma dessas virtudes.
Depois que a Mãe instou Clarabela para mostrar-nos como era boa como pianista, minha namorada, a princípio relutante e negando sem muita convicção, acabou indo ao piano e executou-nos uma série de composições de Mozart, todas de memória, ante os olhares felizes e aplausos da seleta assistência. Teria futuro garantido como pianista, sem dúvida alguma.
Em determinado momento a Mãe da moça pediu-nos licença para ir em busca de um cãozinho que achava muito interessante para me mostrar. Pouco depois chamou o marido para ajudá-la nessa aparentemente difícil tarefa e, por último, também Clarabela. Foi quando me aproveitei do fato de estar sozinho novamente e tentar solucionar o incômodo da poltrona.
Barbaridade! Eu havia me sentado exatamente sobre um filhote de mini-poodle da dona da casa, menor que um punho fechado, e agora estava ali com ele nas mãos, amassado como uma folha de papel naquele vestidinho cheio de rendas. O bicho estava literalmente quebrado ao meio, olhos quase que saindo das órbitas, e pela boca saía um filete de sangue que manchou o veludo da poltrona e minha roupa. Sem querer explicar coisa alguma a ninguém, atirei o corpo do animal pela janela que dava para uma imensa área gramada ao lado da piscina e saí pé ante pé da Biblioteca. Apanhei rapidamente minha capa que estava numa armação perto da porta e saí o mais depressa possível dali. Por sorte um taxi estava passando e tomei-o.
Não voltei a me encontrar com Clarabela e só notei a minha segunda gafe alguns dias depois, quando precisei usar novamente a capa e percebi que não era a minha. Nem tentei reaver a minha e devolver a do meu anfitrião, como não tentei rever Clarabela e nem ela a mim.
Até hoje não consigo imaginar, sem rir, o que se passou pela cabeça de todos quando deram com a mancha de sangue na poltrona, notaram minha fuga misteriosa depois do desaparecimento também misterioso do filhote, o encontro do corpo amassado do cãozinho ao lado da piscina e o roubo da capa do pai de Clarabela.
Boas coisas não foram, tanto que nunca me perguntaram.